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O turismo do avesso de Bolsonaro

Sou mulher e conversando com estrangeiros no Brasil e exterior vi o olhar e o tratamento dos homens mudarem diversas vezes quando eu dizia minha nacionalidade: brasileira.

Nasci e cresci em São Paulo e em vários pontos da cidade é comum encontrar prostitutas nas ruas, carros de todo tipo parando. Há quase 20 anos lembro que fiquei impressionada com o número dessas profissionais na orla de Fortaleza durante a noite.

Essas mulheres nas ruas estão expostas a todos, brasileiro ou estrangeiro. E, em destinos turísticos é ainda mais fácil que um turista do exterior seja um cliente.

No passado, a promoção turística do Brasil era mulher quase pelada no Carnaval ou na praia. Com todo esse cenário, dito e feito, até hoje muitos “gringos” acham que a mulher brasileira está sempre disponível para o sexo, pago ou não.

De acordo com declaração do presidente, Brasil não pode ser o país do turismo gay – Crédito: Alan Santos/PR

Culpa dos estrangeiros? Acho que a selvageria humana vai de cada um, mas claro que o Brasil tem sua parcela de culpa na imagem que passou ao mundo. Um país enorme e com uma biodiversidade incrível como o nosso tem muito mais a promover do que mulher mostrando a bunda.

Só que houve escolhas erradas no passado. Para reparar esse erros, a Embratur muda, a passos lentos, ao longo dos anos. A criação do Ministério do Turismo em 2003 também ajudou, principalmente nos primeiros anos, a mudar um pouco a forma de se fazer turismo, a exploração sexual e, principalmente de menores, passou a ser perseguida.

E, em pleno 2019, vem o excelentíssimo presidente da República, Jair Bolsonaro, e solta a seguinte pérola no dia 25 de abril: “Quem quiser vir aqui fazer sexo com uma mulher, fique à vontade. Agora, (o Brasil) não pode ser um país do mundo gay, de turismo gay. Temos famílias”, disse Bolsonaro.

O preconceito de Bolsonaro custa caro

Com essas poucas palavras Bolsonaro conseguiu: fomentar o turismo sexual, desrespeitar as mulheres, ser preconceituoso com os homossexuais de diversas formas e dispensar um público com alto poder aquisitivo.

Diante da estupidez da frase, procurei alguns dados para comprovar aquilo que a gente vê todos os dias no Brasil, exceto os culturalmente cegos, claro. Pesquisei sobre número de prostitutas e turismo LGBTQ+ e encontrei algumas referências, da primeira parcela da população bem poucos, obviamente por ser uma classe que a sociedade classifica como escória, mas que boa parte deita em suas camas.

A Scelles Foundation é uma fundação europeia que trabalha contra a exploração sexual. De acordo com seu estudo anual de 2016 a prostituição envolve 30 milhões de pessoas ao redor do mundo, a maioria mulheres e crianças, e movimenta US$ 325 bilhões anualmente.

Ou seja, um dinheiro movimentado com a exploração de menores e de mulheres. E, se alguns contestam que as maiores podem tomar suas decisões e entram nessa vida porque querem, o que podemos dizer das crianças?

No Brasil não achei dados recentes sobre a prostituição e lembrei-me de alguns que vi no programa A Liga de 2010. Um blog que pesquisei tinha esses dados, que são: há 1,5 milhão de profissionais do sexo no Brasil; 78% são mulheres; as travestis são apenas 15% e 7% são homens.

Claro que os números podem ter mudado um pouco em quase uma década, porém, provavelmente a quantidade de mulheres na prostituição não diminuiu drasticamente. E, de acordo também com a Scelles Foundation, a maioria dos clientes é do sexo masculino. Ou seja, homens explorando sexualmente mulheres.

No meio de toda essa prostituição no Brasil e no mundo, dos esforços para combate à exploração sexual e de órgãos como Embratur e Ministério do Turismo tentando mudar a imagem do país, nosso presidente declara que os estrangeiros podem vir ao Brasil apenas se quiserem fazer sexo com uma mulher, com home não.

Então, não é só culpa apenas do estrangeiro se ele vem ao Brasil em busca de sexo, pago ou não, e se ele me olha como um pedaço de carne. Não, o presidente incita esse tipo de comportamento.

Gays são bem-vindos e têm família

Deve existir órfão que não foi adotado e que ainda não se casou. Talvez nesses casos pudéssemos dizer que a pessoa “não tem família”. Na verdade, em algum lugar ela tem parentes, mesmo que distantes, mas vamos dizer que nesse tipo de situação a pessoa “não tenha família”.

Um homossexual tem família. Com certeza tem uma mãe e um pai, mesmo que esse pai tenha desaparecido e deixado o filho a cargo da mulher, como muitas vezes acontece. No entanto, ele foi gerado por um casal heterossexual.

Se um homossexual se casar com outro, uma nova família será formada. Mas o presidente disse que não pode ter turismo gay porque temos famílias no Brasil. Ou seja, temos famílias heterossexuais que é o correto na cartilha do presidente e todo resto está errado. E então, temos uma incitação à rejeição das famílias formadas por casais do mesmo sexo e aos homossexuais como um todo.

Em 2018, a Parada LGBT de São Paulo atraiu 3 milhões de pessoas – Crédito: APOGLBTSP

Além de ter incitado a exploração sexual e reafirmado que a mulher brasileira está à disposição de homens estrangeiros, Jair Bolsonaro virou as costas para o turismo LGBTQ+, como se no Brasil pudéssemos nos dar ao luxo de fechar as portas para quem quer fazer turismo de fato (e não explorar as mulheres).

Veja só, em 2018 o Brasil recebeu 6,6 milhões de turistas estrangeiros. O país tem 8,5 milhões de km² e 7,4 mil quilômetros de litoral.
Portugal, por sua vez, recebeu 12,8 milhões de turistas estrangeiros em 2018. Tem 92 mil km². Ou seja, um país que cabe em um Estado brasileiro tem quase o dobro do número de turistas.

Alguns vão dizer que Portugal é Europa, não tem como comparar com o Brasil. Então vamos comparar com os nossos vizinhos conosco. Chile, bem menor que o Brasil, teve 5,7 milhões de turistas estrangeiros em 2018 e o Peru teve 4,4 milhões de turistas, um crescimento de 9,6% em relação a 2017.

O Brasil perde em número de turistas também se o compararmos apenas com um Estado dos EUA, a Flórida. O destino recebeu 10,8 milhões de turistas estrangeiros em 2018. Mesmo nesse cenário vergonhoso para o turismo brasileiro, nosso presidente quer dispensar os turistas LGBTQ+. Além de ser preconceito, é burrice, já que os nossos números perdem até para um único Estado do exterior.

Diante da declaração, fica bem claro que o problema não é receber turistas e gerar dinheiro com a exploração sexual de seres humanos, as mulheres, não, isso tudo bem, o problema é receber os homossexuais.

Na cidade de Nova York são esperados 4 milhões de turistas para participarem de uma série de eventos LGBTQ+, incluindo a WorldPride, para o mês de junho de 2019. A cidade é o principal destino dos EUA nesse segmento, pelo menos 10% do número de turistas anuais na cidade é LGBTQ+.

Nova York estima receber 67,1 milhões de visitantes de 2019 (foram 65,1 milhões em 2018), o que significa que quase 7 milhões serão LGBTQ+.

A Parada do Orgulho LGBT em São Paulo, a maior do Brasil, recebeu três milhões de pessoas o ano passado. Claro, nem todas são turistas ainda mais estrangeiros, mas em 2017, por exemplo, os hotéis paulistanos tiveram 90% de ocupação durante o fim de semana do evento, de acordo com dados da Associação Brasileira da Indústria de Hotéis do Estado de SP (ABIH- SP).

A empresa Out Now lançou um estudo em 2017 (Brazil 2017 Report — Out Now Global LGBT2030 Study) e alguns dados foram levantados. A estimativa é que a comunidade LGBTQ+ no Brasil seja composta por 9,5 milhões de pessoas. No mesmo ano, o país tinha algo em torno de 203 milhões de pessoas. Ou seja, 4,7% da população faz parte desse grupo.

De acordo com a pesquisa, o público LGBTQ+ pretendia gastar dentro de um ano R$ 21,1 bilhões em viagens de lazer. Uma parcela desses bilhões, já que a pesquisa não específica se são roteiros nacionais ou internacionais, poderia ficar aqui mesmo, no Brasil. Ou seja, o turismo interno é fomentado.

Um homossexual que visita o Brasil pode ou não fazer sexo que não envolva dinheiro, como em qualquer outro lugar do mundo, e isso é um problema dele. Porém, se for uma pessoa com preferência sexual masculina, ela encontrará bem menos oportunidades de fazer sexo pago e terá bem menos oportunidades de contribuir para a exploração sexual de um brasileiro.

Em contrapartida, um homem que vem ao Brasil em busca de prostitutas terá mais opções, porque, como vimos por pesquisas (e “está na cara”) é que há muito mais mulheres prostitutas do que homens. Esse dinheiro da prostituição conseguido à custa da exploração sexual, leitor, é bem-vindo para o presidente. Mas o “pink money” (termo para designar os gastos dos LGBTQ+), que não vai explorar ninguém, é rejeitado.

Na louca concepção de mundo de Bolsonaro, um “homem de família” tem todo o direito de viajar o mundo e transar com mulheres envolvendo dinheiro ou não e com as quais não é casado.

Os homossexuais, de acordo com a fala do presidente, não deveriam andar por aí, muito menos visitar o Brasil porque eles poderiam fazer algo como acabar com a família brasileira. Eu, como mulher e ser humano, nem preciso de dados para me sentir desrespeitada por mim e por toda comunidade LGBTQ+.

Agora, fico pensando, adianta, presidente, isentar visto e ofender uma boa parcela dos turistas estrangeiros? Talvez, só no país do turismo do avesso que existe na cabeça de Jair Bolsonaro, um lugar no qual o dinheiro da exploração sexual é bem-vindo, mas o de turistas comuns, não. Não sejamos esse país.